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Seg, 29 Abril 2024 15:17

O cinema cearense que conquista o mundo

Seleção do filme "Motel Destino" ao Festival de Cannes mostra a força do cinema cearense numa cena que evoluiu com políticas públicas e escolas de audiovisual


Pioneira no Estado, a graduação da Universidade de Fortaleza articula teoria e prática de forma inovadora para o mercado (Imagem: Ares Soares/Divulgação)
Pioneira no Estado, a graduação da Universidade de Fortaleza articula teoria e prática de forma inovadora para o mercado (Imagem: Ares Soares/Divulgação)

O Ceará vai a Cannes. Está no mapa do mundo do cinema. O filme “Motel Destino” — dirigido pelo cineasta Karim Ainouz e produzido por uma equipe repleta de cearenses — disputa a cobiçada Palma de Ouro. É o único filme latino-americano da lista de um dos maiores festivais do mundo. Deste lugar de prestígio global, a obra demonstra também a evolução do mercado audiovisual do Ceará e traz para a Terra da Luz o reconhecimento de sua produção, tão viva e potente.

O caminho do Estado até esta posição inclui desde a criação de várias escolas de cinema até políticas públicas consistentes de formação. É neste contexto que está o surgimento, há 15 anos, da graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, vinculada à Fundação Edson Queiroz. O curso foi pioneiro no Ceará, que tem visto crescer um grupo de jovens realizadores talentosos.

“Nenhum campo artístico desenvolve-se com qualidade estética sem o pensamento crítico, sem a formação de repertório. O ambiente escolar favorece essa construção, porque a escola é um lugar de encontro, de diversidade, de embate de ideias. E, nessa perspectiva, o Ceará hoje tem um cenário importante, porque temos muitas experiências de formação, em diversos níveis de aprendizagem”, afirma a professora doutora Elisabete Jaguaribe, coordenadora da graduação na Unifor.

Ela lembra que “Motel Destino”, por exemplo, é um filme diretamente ligado ao Laboratório CENA 15 do Porto Iracema das Artes, referência de formação de roteiristas no país. 

“Além de formação de excelência, o CENA 15 é também lugar de encontro de alunos de outras escolas, que querem se especializar em roteiro. O ‘Motel Destino’ também seguiu essa característica, reunindo alunos de várias experiências formativas, incluindo egressos e estudantes do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor”, conta.

Protagonismo na retomada do cinema brasileiro

Dentre mais de 5.000 filmes vistos, “Motel Destino” foi selecionado com outras 18 produções para disputar a Palma de Ouro. “Recebi a seleção com muita alegria e orgulho”, conta o cineasta cearense Karim Ainouz. É um filme que se coloca dentro de uma nova retomada do cinema brasileiro.

É bonito que o Ceará seja um dos protagonistas dessa retomada, ao lado de vários outros filmes nacionais que foram selecionados para mostras paralelas neste ano. Acho que isso prova a vitalidade do cinema brasileiro contemporâneo”, afirma Karim.


[A seleção para o Festival de Cannes] prova que nossos filmes estão no mesmo patamar de filmes prestigiosos produzidos ao redor mundo. Acho que isso é muito importante não só para o Ceará, mas para o Brasil e a América Latina” — Karim Ainouz, cineasta e diretor de “Motel Destino”

Motel Destino” foi feito num Estado que, pelo menos duas décadas atrás, estava longe do mapa do cinema brasileiro e mundial. Karim pontua que, naquela época, existiam produções feitas no Ceará, que agora alcança um lugar de protagonismo no cinema brasileiro, juntamente com outros estados do Norte e Nordeste, ainda tratados como se fossem periféricos. “Isso é maravilhoso”, pontua.

Para o cineasta, a seleção de “Motel Destino” ao Festival de Cannes não só joga luzes sobre a produção cearense, mas tem potencial para estimular novas produções locais, feitas por gente daqui e de fora.

Ele espera que a participação no mais cobiçado prêmio de Cannes estimule uma nova geração que está fazendo audiovisual a se permitir sonhar e imaginar que esse sonho pode virar realidade. “Eu também tive esse sonho há 20, 30 anos, quando comecei a fazer cinema, e não achei que ele seria possível”, diz.

Desde então, Karim viu sua terra natal ganhar várias escolas de cinema em diferentes níveis de formação. “Esse filme não é só um filme, mas é um filme que traz para o corpo dele pessoas que passaram por processos de formação que fizeram com que ele pudesse existir”, afirma. 

O longa conta com a participação de alunos e egressos da Unifor, inclusive em funções de liderança na produção. “[O curso de Cinema e Audiovisual da Unifor] existe há 15 anos e tem uma perenidade importante. Nada disso veio do nada. (...) A gente está colhendo os frutos de algo que está sendo plantado há muitos anos”, reconhece o cineasta.
 

O sonho de viver do cinema em uma cena em formação

Da segunda turma de Cinema e Audiovisual da Unifor, o egresso Maurício Macêdo ocupou um posto de liderança em “Motel Destino” como um dos produtores executivos. Ele conheceu Karim no Porto Iracema e recebeu o convite para participar da produção. 

Já tinha uma estrada no mercado. Desde que se formou, ascendeu de assistente de produção a direção de produção e depois produção executiva. Começou a produzir projetos próprios. Com “Greta”, de Armando Praça, foi ao Festival de Berlim. Fez também a série “Meninas do Benfica” para o Canal Brasil.

Também atuou no popular “Bem vinda a Quixeramobim”, de Halder Gomes. Este último foi gravado durante a pandemia, sob rígidos protocolos. “Foi um processo bem difícil porque foi uma das primeiras produções que começou a rodar durante a pandemia”, lembra. Teve quarentena, testagens rígidas e cuidado, mas deu tudo certo. “Foi rico e divertido. Foi muito bom ver o sucesso depois”, diz.

Maurício conta que entrou na graduação em Cinema na Unifor numa época em que a cena ainda estava em formação e não havia tantos produtores. Empenhou-se em se conectar com as pessoas, bateu em muitas portas em busca de oportunidades na produção. “Eu me coloquei para jogo, para correr atrás das oportunidades e agarrá-las”, lembra. Criou um networking pelo sonho de viver de cinema. E conseguiu.


Cinema foi a minha segunda experiência na universidade, então eu já tinha alguma maturidade para enxergar as oportunidades e ferramentas que podem chegar a partir dela. Foi muito bom me conectar com pessoas que são amigas até hoje e colegas de trabalho. Consegui entrar em uma cena que ainda estava em formação” — Maurício Macêdo, egresso de Cinema e Audiovisual

Foi assim que ele foi conquistando espaço para trabalhar em produções de diretores como Marcelo Gomes, Rosemberg Cariry, Ivo Lopes Araújo, Petrus Cariry, Leonardo Mouramateus, entre outros. A vontade de fazer cinema de raiz nordestina e cearense o levou a fundar a empresa Moçambique Audiovisual. Atualmente, Maurício executa seis projetos como produtor, em diferentes fases de realização. 

Da graduação ao Festival de Cannes

Imagine participar de um filme que disputará um dos mais cobiçados prêmios de cinema do mundo, a Palma de Ouro em Cannes, quando ainda sequer terminou a graduação! “Uma oportunidade como essa me dá a sensação de que é possível chegar [longe] e que é questão de tempo”, diz João Douglas Marques, aluno do 8º semestre de Cinema e Audiovisual da Unifor.

Em “Motel Destino”, sua função foi de contrarregra. “Fiquei responsável pelos objetos de cena, auxiliar na entrada e saída dos atores e pelos ajustes nos cenários”, conta. JD, como é chamado pelos colegas de curso, diz que foi uma experiência muito enriquecedora, com uma equipe enorme e gente de diversos lugares do país.

“Uma lembrança engraçada que tenho é que, durante os preparativos para as gravações noturnas, havia acabado de chegar no parque eólico, durante o percurso num breu absoluto. No meio do nada vejo um carro acelerando na contramão e de repente estou dando informações para o Fábio Assunção de como chegar à locação. Foi uma das experiências mais aleatórias e especiais da minha vida”, narra.

JD foi indicado para participar da produção por um amigo que conheceu num projeto de gravações de videoclipes para artistas independentes de Fortaleza. Acabou selecionado para o posto. Para ele, participar de um grande projeto cinematográfico e estar diante do mais alto nível de profissionais o fez refletir como o mundo é um local gigantesco e como existem infinitas conexões e oportunidades para construir. 

“Sou um jovem negro de periferia, cria da Messejana, filho da dona Ana, que criou sozinha dois filhos. Nunca achei que alcançaria algo como essa participação em um filme que vai para Cannes nesse momento da minha carreira. Fico muito feliz em conseguir colher os frutos que plantei durante minha graduação”, afirma.

A expectativa agora é de alcançar voos maiores na carreira. E JD acredita ter adquirido as ferramentas necessárias para isso durante o curso na Unifor. “Ele me deu todas as bases de conhecimento do universo amplo que é o audiovisual. Com auxílio de oficinas e laboratórios de criação, pude ter um contato com todas as áreas possíveis”, celebra.


Tive muitas oportunidades através do curso [de Cinema e Audiovisual], desde diversos estágios até a realização do meu TCC. As conexões que fiz durante o curso com professores e colegas me abriram portas” — João Douglas Marques, aluno do curso de Cinema e Audiovisual

Um curso que alia teoria e prática de forma inovadora

Avaliado com nota máxima pelo Ministério da Educação pela terceira vez consecutiva, o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza tem contribuído para o fortalecimento do campo audiovisual do Ceará e do Nordeste.

“Nossos egressos estão ocupando lugares de liderança na produção de cinema no país, participando do circuito de exibição e ganhando prêmios. Temos uma preocupação enorme com esse lugar que conquistamos”, afirma a coordenadora Elisabete Jaguaribe.

Ela diz que isso é resultado de um projeto pedagógico que articula teoria e prática de forma inovadora, mas também da consciência da responsabilidade de fazer cinema em uma região que, historicamente, foi representada de maneira enviesada. “O que temos de mais precioso é uma responsabilidade enorme com a imagem que produzimos, no contexto de uma região que foi estigmatizada”, acrescenta.

Elisabete diz que a Unifor oferece um projeto pedagógico profundamente inovador, elaborado por um grupo de docentes de alto nível intelectual, mestre e doutores com forte trajetória acadêmica e de mercado. Também conta com uma infraestrutura de equipamentos extraordinária, além de espaços de práticas que fazem diferença.


Somos um curso ligado radicalmente com a experiência cultural brasileira, mas com uma conexão forte com o que se passa no mundo. Formamos realizadores audiovisuais cidadãos do mundo” — Elisabete Jaguaribe, professora doutora e coordenadora do Curso de Cinema e Audiovisual da Unifor

Não é à toa que os egressos da Unifor ocupam lugar de destaque na cena regional, nacional e internacional. As produtoras Bárbara Cariry, Ticiana Augusto e o produtor Maurício Macedo são exemplos de quem movimenta a cena audiovisual do Estado, com lançamentos de filmes que conquistam prêmios nacionais e internacionais. Em 2016, o TCC do egresso Artur Leite, o curta-metragem “Abissal”, ganhou o 21º É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, recebendo uma pré-indicação para o Oscar de 2017.

"São tantas conquistas que é muito difícil citar só algumas. Mas o mais importante é que sabemos que estamos contribuindo enormemente com a formação de jovens realizadores, comprometidos com o cinema brasileiro", pontua Elisabete.

Um percurso transformador

Bárbara Cariry conta que o cinema sempre fez parte da vida dela, já que o pai é cineasta e a mãe é produtora e atriz. “Aconteceu tudo de forma clara e natural, esse meu interesse acompanhando sets”, diz. O encanto inicial pela fotografia e pela direção deram espaço para a produção, função à qual mais se dedica atualmente.

A egressa da Unifor tem participado de produções de destaque, circulando em obras de realizadores de diferentes gerações. Participou, por exemplo, de “Sertânia”, de Geraldo Sarno, um filme forte e denso rodado no interior da Bahia e que teve presença marcante em festivais. Também atuou em “Mais Pesado é o Céu”, filme de Petrus Cariry que levou quatro prêmios no Festival de Gramado em 2023. 

Bárbara foi da primeira turma de Audiovisual e Cinema. “Foi a complementação de uma prática. Eu já trabalhava com cinema e, dentro do curso, tive a oportunidade de ter a teoria”, diz. A produtora executiva, hoje reconhecida no mercado, diz que a jornada acadêmica foi transformadora.


Para mim, [a Universidade] foi muito importante como esse espaço de aprendizado, de pensar o cinema, de me exercitar e me lançar dentro de outras áreas. Eu me senti muito livre para experimentar. Tive a oportunidade de fotografar, fazer roteiro, montar. Para um profissional, isso é importante porque nos faz ter mais clareza do caminho a seguir. E nos torna mais completos por compreender processos diferentes” — Bárbara Cariry, produtora executiva e egressa do curso de Cinema e Audiovisual

Bárbara diz que o diferencial da Unifor é oferecer um curso completo, com professores e convidados que estão atuando no mercado, filmando e renovando experiências. “Sempre que sou convidada para acompanhar projetos dos alunos do CineLab, vou com muita felicidade porque acho que é uma troca importante”, afirma. 

A descoberta em experimentar múltiplas funções

No sétimo semestre da graduação em Cinema e Audiovisual, Mabi Sousa está empenhada em trilhar diversas funções na área e descobri-la. Abraçou trabalhos de roteiro, produção e fotografia e não está com pressa para delimitar melhor sua área de atuação.

“Acho que é importante nesse início tentar trabalhar com um pouco de tudo, ter dimensão do cinema e audiovisual como um todo na prática, visto que é um trabalho tão coletivo, onde sua função interfere diretamente em outras”, explica.

É assim que ela vem se destacando em um mercado potente como o do audiovisual. Participou do roteiro do filme “Só no Sertão”, exibido na Rede Globo neste ano. Fez assistência de direção, roteiro e arte no clipe “Vamos Torcer Por Elas”, premiado pela Globo como melhor chamada na categoria jornalismo e esporte.

Na graduação, ela destaca estar aprendendo não só a técnica para fazer cinema, mas a ética por trás das câmeras e o pensamento crítico. Na Unifor, ela diz contar ainda com estrutura de ponta e apoio para inserção ao mercado de trabalho. 


O curso de Cinema na Unifor me formou enquanto cineasta, para além da técnica, para além de saber operar coisas ou desempenhar certas funções. O curso me moldou, enquanto alguém que realiza filmes, a ter responsabilidade nos meus discursos e modo de gravação desde a construção de equipe” — Mabi Sousa, aluna do curso de Cinema e Audiovisual

Oportunidade para romper o isolamento

O mercado cearense está vivo e potente, e isso pode ser percebido em muitas esferas - desde os trabalhos de destaque de jovens realizadores ganhando espaço no cenário nacional até a seleção de “Motel Destino” a um dos prêmios mais cobiçados do cinema mundial, a Palma de Ouro.

O diretor cearense Karim Ainouz disputa com nomes como o gigante Francis Ford Coppola, conhecido por filmes como “Poderoso Chefão” e “Apocalypse Now”. Cannes é lugar de qualidade e paixão pelo cinema, mas também espaço de diversidade. O Ceará está no lugar certo. 

“Acho que isso traz uma visibilidade enorme ao cinema brasileiro e, muito especialmente, ao cinema que fazemos no Ceará”, diz Elisabete. Para ela, é uma oportunidade de romper um certo isolamento característico do Estado.

“Temos que aproveitar esse momento para construir novas possibilidades para as dezenas de jovens realizadores audiovisuais. Nesse sentido, Karim Ainouz nos favorece com sua generosidade e seu talento, porque ele tem uma preocupação enorme em expressar suas origens, em construir com as novas gerações essas possibilidades de criação”, pontua. Vida longa ao cinema do Ceará!