null Há 50 anos de portas abertas para a arte cearense

Seg, 14 Agosto 2023 13:43

Há 50 anos de portas abertas para a arte cearense

Um dos maiores salões de arte do Brasil, a Unifor Plástica completa meio século de uma história que destaca diferentes gerações de artistas, celebra grandes nomes e desenha os caminhos da arte cearense contemporânea


A 22ª edição da Unifor Plástica entra em cartaz a partir do dia 18 de agosto, no Espaço Cultural Unifor (Imagem: Divulgação)
A 22ª edição da Unifor Plástica entra em cartaz a partir do dia 18 de agosto, no Espaço Cultural Unifor (Imagem: Divulgação)

É sobre uma rica conexão entre ciência e arte que já dura meio século. A Universidade de Fortaleza, vinculada à Fundação Edson Queiroz, nasceu para reverberar o conhecimento e desenvolver o Ceará. Mas desde o início da sua trajetória abriu um espaço singular para a arte. Um lugar para destacar distintas gerações de artistas, celebrar grandes nomes e apontar os caminhos da arte contemporânea cearense.

A primeira edição da Unifor Plástica, que ao longo do tempo se tornou um dos maiores salões de arte do Brasil, aconteceu apenas três meses depois da criação da Universidade, em junho de 1973. Desde então, o espaço para fomentar e difundir obras artísticas só cresceu. Da Biblioteca ao centro cultural, respiramos a arte pelo campus por meio de esculturas, pinturas, instalações e até das próprias espécies que compõem os jardins.

“A gênese, o DNA da Unifor Plástica já vem com a instauração da Universidade, já traz a cultura ali conectada com a sua filosofia do ensinar e do aprender. Sempre houve o pensamento do estímulo, do fomento dos artistas”, afirma a chefe da Divisão de Arte e Cultura, Adriana Helena S. Moreira.

Como não recordar de nomes consagrados que já passaram pela mostra, como Chico da Silva e Hélio Rola? Neste ano, a Unifor Plástica chega à 22ª edição como um espaço que conecta artistas de diferentes gerações, dá visibilidade e os ajuda a se projetar para o Brasil e o mundo.

Aberta para visitação a partir de 18 de agosto no Espaço Cultural da Unifor, a exposição também celebra três cinquentenários: da Universidade, da própria mostra e da carreira do artista veterano José Guedes.

As tendências da produção cearense

Se em um primeiro momento a seleção dos artistas e das obras que integrariam a mostra ocorria por inscrição em edital, desde 2011 essa escolha passou para a figura de um curador, que vislumbra pontes e diálogos entre as obras. É uma forma de ajudar a entender as tendências e trajetórias da arte cearense contemporânea e situá-las nos contextos nacional e internacional. De ampliar diálogos.


[A Unifor Plástica] passou a adotar o conceito de ter uma curadoria para fazer a seleção das obras justamente com o objetivo de criar, realmente, uma linguagem, de procurar estabelecer uma ligação entre todas as obras e poder apontar melhor as características da produção cearense” — Denise Mattar, curadora

Curadora da edição deste ano, Denise Mattar conta que o conceito da mostra saiu da análise de obras já prontas. Ao avaliar a produção cearense, ela percebeu uma tendência também observada na arte brasileira e estrangeira: a de grupos de artistas trabalhando em torno de questões urgentes contemporâneas.

Afinidades eletivas

“Fui juntando os artistas sob o título de afinidades eletivas”, explica a curadora, usando um termo da química. Esse conceito analisa a formação de dois elementos que se atraem e, de repente, na presença de outros pares, se desfazem e formam um novo composto.

A expressão foi aplicada a outras esferas do conhecimento por pensadores como Goethe, Walter Benjamin e Max Weber. Agora, ela é apropriada na exposição conceitualizada por Denise ao reunir grupos de artistas cuja obra se relaciona com temas significativos para a identidade cultural cearense:

  • a ancestralidade africana,
  • a ancestralidade indígena,
  • as questões de gênero,
  • a revisão das tradições nordestinas,
  • a urbanidade,
  • os alertas ambientais,
  • a importância da memória.


Instalação “Lampejos” (2022), de Delfina Rocha

São 60 obras conectadas por “afinidades eletivas” em mídias como instalação, pintura, vídeo, QR Code, paisagens sonoras e criações digitais. “Tem vários tipos de propostas, indo desde a pintura, que é uma coisa, digamos, mais tradicional, até obras inteiramente digitais. A exposição permeia questões da contemporaneidade tanto nos temas que estão sendo tratados quanto nas mídias utilizadas”, acrescenta a curadora.

A mostra “Afinidades Eletivas: estratégias para um mundo mutante” reúne trabalhos de 31 artistas plásticos cearenses, com ligações afetivas ao Estado ou histórias cruzadas com a Unifor. São artistas de distintas gerações que se conectam e apontam as tendências da arte produzida aqui.

Para celebrar a memória e a rica trajetória de um veterano

A história do artista plástico José Guedes se cruzou muitas vezes com a da Unifor. Foi lá que ele se formou em Direito em um acordo familiar para ter diploma de graduação enquanto se desenvolvia na arte. Também foi lá que expôs sua obra em distintos momentos da carreira.

Veterano das primeiras edições da Unifor Plástica e reconhecido internacionalmente, José Guedes celebra 50 anos de carreira, uma data que coincide com o jubileu de ouro da Universidade que agora o homenageia.

“Uma homenagem dessas é gratificante para qualquer artista por conta da importância que a Unifor Plástica tem para o Brasil e pelos artistas que ela envolve. A mostra te coloca em uma galeria de homenageados relevantes, ícones da arte cearense”, afirma.

Na sala especial da mostra, Guedes terá os conceitos de sua vasta obra representados em uma instalação imersiva com tridimensionalidades por meio da dobradura do papel, de sombras contrastadas por luz negra e de sonorização da Paixão de São Mateus, de Bach, executada pela Camerata da Unifor.

Tudo para celebrar a história deste artista multimídia, que começou com desenhos de infância que já pareciam bem mais que um rabisco, repletos de expressividade e noção estética. Desde os 12 anos, o cearense se abriu para o mundo da arte, procurando seu próprio caminho, muitas vezes completamente diferente de seus mentores.

Embora a base de tudo seja a pintura, ele trabalha com instalações, fotografias, esculturas e várias outras mídias. A influência artística de Guedes foi marcada ainda pela relação familiar com nomes como Aldemir Martins e José Eduardo Pamplona. “Tive o privilégio de ter esse pessoal na minha base, na minha formação”, conta.


José Guedes também teve sua obra exibida na exposição “50 Duetos”, que aconteceu em 2022 no Espaço Cultural Unifor (Foto: Arquivo pessoal) 

Em 1973, veio o primeiro prêmio no Salão dos Novos, sinalizando oficialmente o início da carreira. Daí em diante foram várias edições da Unifor Plástica como artista, jurado, convidado e premiado. “Ganhar um prêmio em um salão que já estava despontando como importante na cidade, e que hoje é um salão importante no Brasil, é excelente para a trajetória de qualquer artista. A Unifor Plástica me deu visibilidade”, diz.

Quando completou 25 anos de uma carreira já consolidada, voltou à Universidade para uma exposição individual na Biblioteca. “Foi uma exposição muito importante para minha trajetória”, avalia, lembrando dos painéis e do rico catálogo com sua obra.

Agora, ele, que também já redesenhou a marca da campanha Doe de Coração, volta mais uma vez para celebrar seus 50 anos de arte. “Assim fecha um ciclo interessante na minha relação com essa Universidade”, diz.


A Unifor Plástica está em plena evolução porque soube acompanhar os novos tempos e foi se modificando em função das coisas que iam acontecendo na arte nacional e internacional. Embora o foco seja a arte cearense, ela foi inserindo o artista local no contexto do Brasil e do mundo.”José Guedes, artista plástico

Da monitoria no Espaço Cultural à estreia no salão de arte

De tanto inventar brincadeiras na infância para lidar com sua casa e uma dinâmica familiar de mãe e avó que trabalhavam muito, o artista plástico Arrudas foi criando desenhos, amigos imaginários e se desenvolvendo artisticamente.

Criança extrovertida em família reservada, brincava narrando e criando imagens do que via em casa, um caminho que mais adiante o levou a dialogar com a psicanálise. Hoje costuma dizer que seu trabalho é autobiográfico. Ele estreia na Unifor Plástica com uma obra que subverte fotografias de família, em alusão forte à memória.

A participação na mostra é a coroação de um amplo percurso na Unifor. Arrudas escolheu a Universidade para cursar Publicidade e Propaganda justamente por conta do vasto espaço à arte, encantado com uma exposição da Adriana Varejão no Espaço Cultural. Lá, também concluiu a graduação, período em que foi entendendo sua sexualidade e se identificando como uma pessoa não-binária.

A Unifor foi um espaço de refúgio, de encontrar obras. Precisava conhecer o que estava ligado àquele espaço”, conta. Conseguiu uma vaga para monitoria no Espaço Cultural e, ali, um novo mundo se abriu ao mergulhar nas coxias da arte.

“Foi meu primeiro emprego, então foi um espaço muito simbólico. Aprendi muito sobre comunicação interpessoal, fiz amizades que levo até hoje. Também foi um encanto ter acesso a bastidores do mundo da arte”, resume.

Arrudas conheceu seu atual galerista por meio do Espaço Cultural, onde ficou um ano e meio como monitor. Seguiu produzindo e começou a mandar obras para feiras e bienais de arte. Quando recebeu o convite para integrar a 22ª Unifor Plástica, se surpreendeu. Lá, apresentará duas obras nas quais leva fotografias dos avós a uma nova configuração e reflete sobre a libido transgeracional.


“Minha formatura no mundo das artes é aqui na Unifor Plástica. É muito simbólico pra mim ver a reverberação de uma mudança. Aqui tive o primeiro contato com o espaço e agora vou ocupá-lo. A Unifor Plástica é uma aceleradora de encontros, trocas e de debates muito interessantes.”Arrudas, artista plástico

Urbanidade e experimentação em destaque

Desde que cursavam Artes Visuais no Instituto Federal do Ceará (IFCE), Robézio e Terezadequinta lembram do furor da capital à espera da Unifor Plástica. “Sempre era um movimento que as pessoas esperavam”, lembra Tereza, dando dimensão da importância do evento na cena artística cearense.

A produção que o casal desenvolve por meio do reconhecido Acidum Project desembarcou na mostra pela primeira vez em 2015, quando fizeram um grande mural para a abertura. “O chanceler Airton Queiroz tinha visto o trabalho da gente, convidou para pintar o mural e também fazer o cartaz principal do convite da exposição”, conta Robézio.


Robézio e Terezadequinta integram o Acidum Project (Foto: Viktor Braga/Divulgação)

Em 2023, eles voltam à mostra com uma produção especial: é a primeira vez que será exposta em Fortaleza uma obra da série “Abstratos”, produzida nos últimos anos. Parte da coleção já foi exposta em Lisboa e na Austrália.

Transitar na rua, nas galerias e nos museus é uma marca do Acidum, que experimenta ideias e conexões há mais de 15 anos. Os artistas visuais, que não se limitam a uma só técnica, têm percorrido continentes como Europa, América e África para apresentar seu trabalho, que transita pelos universos da arte contemporânea, street art e raízes nordestinas. São obras icônicas, carregadas de simbolismo.

As telas da série “Abstratos” começaram a ser produzidas em 2018 e algumas delas já viajaram por vários países. “Está sendo muito importante participar desta edição da Unifor Plástica, principalmente pelo fato de ser a primeira vez que vamos apresentar a série ‘Abstratos’ em Fortaleza. É a primeira vez que amigos e familiares vão poder ver essa série saindo do ateliê”, celebra Tereza.

Experiência de composição com a natureza

A artista visual Waléria Américo direcionou sua pesquisa artística para o campo da performance e audiovisual, estabelecendo relação entre corpo e cidade. Observando o corpo como instrumento de escuta entre lugares, ela apresentará nesta edição da Unifor Plástica um recorte da sua pesquisa diante do horizonte de rio-floresta amazônica.

“A performance sonora ‘Tocar o Rio’ (2021/2022) trata da relação do corpo na paisagem e a experiência de composição com a natureza. As imagens e a paisagem sonora projetadas no espaço expositivo fazem parte de uma investigação que desenvolvo na cidade de Belém do Pará”, explica.


Performance sonora “Tocar o Rio” (2021/2022), de Waléria Américo, estará presente na 22ª Unifor Plástica (Imagem: Arquivo pessoal)

Waléria é veterana na mostra, seja como visitante ou participante. Na graduação de Artes Visuais, já se encantava com a exposição. Depois, participou a convite dos curadores nos anos de 2014 e 2018. 

Durante a participação da XVII Unifor Plástica, ela apresentou o vídeo “Des-limite” (2006) e a fotografia “Plano de Fuga” (2009), obra que ficou depois da mostra no acervo da Fundação Edson Queiroz. “A aquisição representa tanto o reconhecimento do trabalho do artista quanto oportunidades para compor novos projetos, além de ser especial fazer parte de acervos de arte importantes da sua cidade”, afirma.

Para ela, integrar mostras coletivas como a Unifor Plástica coloca o trabalho do artista em movimento para participar das reflexões de mundo. “A montagem de obras anteriormente realizadas em conversação com a curadoria pode revelar novas dimensões da produção artística. Neste processo de exposição geralmente existem diferentes trocas humanas e profissionais”, diz Waléria.


A importância de mostras como a Unifor Plástica e outras que fazem parte do circuito de arte local perpassa o fortalecimento da produção artística e o diálogo com o público. A permanência da Unifor Plástica no calendário cearense colabora no presente pela exibição das obras e os debates promovidos pela curadoria, bem como projeta no futuro possíveis histórias, pesquisas em arte e a legitimação dos artistas.” — Waléria Américo, artista visual

Meio século conectando ciência e arte

Em uma edição que conecta artistas preocupados em repensar e representar temas caros à contemporaneidade, a Unifor Plástica abraça também diversidades e coloca em evidência mulheres, indígenas, pessoas LGBTQIA+, jovens e artistas veteranos

A Unifor Plástica tem uma contribuição importantíssima no campo das artes no estado do Ceará. Ela vem celebrando nomes, colocando artistas e promovendo também a formação”, afirma Adriana Helena, chefe da Divisão de Arte e Cultura da Universidade de Fortaleza.

Uma novidade deste ano é o prêmio ao artista mais destacado da mostra, eleito por um júri especializado: passagens aéreas e ajuda de custo de mil euros para vivenciar a Bienal de Veneza em 2024. O vencedor será anunciado no dia 17 de agosto, durante a abertura do evento. “Isso também significa investimento na formação dos artistas, que têm a oportunidade de conhecer a Bienal mais importante e antiga do mundo”, acrescenta Adriana.

Nas últimas cinco décadas, a Unifor Plástica lança luzes aos artistas cearenses em desenvolvimento de carreira. É uma plataforma para artistas emergentes mostrarem seu trabalho e fazerem conexões. Um lugar de experimentação, networking, aprendizado e reconhecimento do público. Mas também de unir arte e ciência para promover reflexões.


A Unifor Plástica tem força de atualizar as demandas e os assuntos, os conteúdos que estão sendo tratados dentro de sala de aula. E é isso que a gente vem fazendo, essa troca de conhecimento e essa profusão pela potência que a arte é capaz de fazer com o câmbio entre arte e ciência” — Adriana Helena, chefe da Divisão de Arte e Cultura da Unifor